Pergunta
As traduções da Bíblia devem usar uma linguagem que inclua o gênero?
Resposta
Nas últimas décadas, surgiram diversas novas traduções da Bíblia em português, com o objetivo de tornar o texto mais claro, acessível e linguística e culturalmente atualizado. Um dos temas mais debatidos nesse processo é o uso da linguagem inclusiva de gênero. Embora essa abordagem busque representar melhor toda a humanidade, ela também levanta questionamentos importantes sobre fidelidade ao texto original e possíveis distorções teológicas.
O português, ao contrário do inglês, é uma língua altamente marcada por gênero e número. Quase todos os substantivos, adjetivos e pronomes são definidos como masculinos ou femininos. Tradicionalmente, o masculino plural serve como forma genérica — por exemplo, “irmãos” pode incluir homens e mulheres —, mas isso tem sido contestado por movimentos que o consideram excludente. Como resposta, algumas traduções têm tentado neutralizar o gênero, o que pode levar, em certos casos, à perda de nuances teológicas importantes.
Versões recentes da Bíblia em português, como a Nova Versão Transformadora (NVT) ou a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), optam por expressões como “todos” ou “todas as pessoas” em vez de “todo homem”. Essa escolha pode ser válida quando o contexto claramente indica uma aplicação universal, como em Colossenses 1:28. A Almeida Revista e Atualizada diz: “advertindo a todo homem...”, mas a NTLH traduz como: “aconselhamos e ensinamos cada pessoa...”. Nesse caso, a linguagem inclusiva não altera a mensagem original de Paulo, mas pode até torná-la mais compreensível ao leitor moderno.
Outro recurso comum é o uso do plural neutro para evitar pronomes de gênero no singular. Por exemplo, Levítico 24:15, traduzido literalmente, pode conter pronomes masculinos por padrão. Versões modernas adaptam isso para uma forma que inclua ambos os sexos, refletindo que a aplicação da lei era para todos os israelitas, não apenas os homens.
Em algumas traduções, como a NVI em português, o termo "irmãos" em 1 Tessalonicenses 4:10 é mantido, refletindo a tradução do termo grego adelphoi, que, embora seja formalmente masculino, é amplamente entendido como uma forma genérica que se refere à comunidade cristã como um todo — tanto homens quanto mulheres. Nesse caso, a NVI não faz a alteração para “irmãos e irmãs”, pois "irmãos" já é interpretado como uma expressão inclusiva em muitos contextos, especialmente quando se trata da igreja como um corpo coletivo. Portanto, a tradução de “irmãos” é considerada fiel ao significado original do grego, sem a necessidade de especificar o gênero, uma vez que o contexto de Paulo envolve toda a comunidade cristã.
Entretanto, é preciso cautela. Em textos onde o gênero tem papel teológico claro, como na forma como Deus se revela como Pai, alterações motivadas por preocupações modernas com linguagem neutra podem distorcer verdades fundamentais da fé cristã. Substituir “Pai” por “mãe” ou “progenitor” ignora a maneira como o próprio Deus escolheu se revelar e rompe com o testemunho contínuo das Escrituras.
As escolhas de tradução também variam conforme a abordagem adotada: a equivalência formal, que tenta manter o mais próximo possível da estrutura do texto original, tende a preservar o gênero como ele aparece nos manuscritos. Já a equivalência dinâmica, que foca na ideia geral, é mais aberta a adaptações inclusivas. Ambas têm seus méritos e limitações, e o mais importante é que qualquer tradução respeite a intenção original dos autores inspirados por Deus (cf. 2 Pedro 1:21; 2 Timóteo 3:16).
Além da linguagem, fatores como descobertas arqueológicas e novos manuscritos têm ajudado os tradutores a entender melhor termos difíceis ou raros. Contudo, é preciso discernimento: nem toda nova tradução visa a precisão bíblica. Algumas versões, como a Tradução do Novo Mundo, usada pelas Testemunhas de Jeová, são amplamente criticadas por alterarem o texto intencionalmente para sustentar doutrinas específicas.
Em resumo, a linguagem inclusiva pode ser útil e apropriada quando respeita o significado original da Palavra. No entanto, mudanças que distorcem o texto em nome de uma sensibilidade cultural moderna devem ser evitadas. A fidelidade às Escrituras deve sempre estar acima de modismos linguísticos ou pressões ideológicas. Afinal, “não acrescenteis à palavra que vos mando, nem diminuais dela” (Deuteronômio 4:2).
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As traduções da Bíblia devem usar uma linguagem que inclua o gênero?
